D. Demétrio Valentini
Preâmbulo:
A figura conciliar de Dom Helder Câmara
Antes de abordar o assunto de hoje, a indispensável homenagem a Dom
Helder Câmara. Sobretudo em Recife, não dá para falar em Concílio Ecumênico sem
ter como referência a figura de Dom Helder Câmara.
Sem sombra de dúvida, no contexto dos
“Padres Conciliares” deste 21º Concílio Ecumênico, Dom Helder emerge como o
exemplo maior de devotamento pessoal à causa do Concílio, de abertura de
espírito, generosidade de propostas, e esperança confiante nos resultados do
Concílio.
Ninguém sonhou tanto como Dom Helder! Em sua homenagem, queremos ter
presente agora o seu sonho, quando se aproximava o terceiro milênio: a
humanidade em paz, o mundo sem fome, e a Igreja realizando o Segundo Concílio
de Jerusalém.
Introdução
Para desenvolver a reflexão de hoje, proponho que façamos como os
discípulos de Emaús. Vamos percorrer o processo conciliar. Ao longo do caminho
irá emergindo a eclesiologia do Vaticano Segundo, com a vantagem de percebermos
suas diversas dimensões, contextualizadas na dinâmica conciliar, para assim
captar melhor o impacto que tiveram.
Ao longo do caminho, como os discípulos de Emaús, nosso coração também
poderá arder de entusiasmo pela Igreja imaginada pelo Concílio. Sem esquecer
que ela é chamada a viver o mistério pascal, em que nem tudo acontece de acordo
com as nossas expectativas, como os discípulos de Emaús experimentaram
vivamente.
I - A Igreja sonhada por João 23
Vamos iniciar nossa caminhada, conferindo os sonhos de João 23.
Para isto, vamos recuperar algumas breves passagens do seu famoso
discurso de abertura do Concílio no dia 11 de outubro de 1962.
Começamos por captar sua alegria, seu entusiasmo, e sua confiança, com as
palavras iniciais, que ainda parecem ecoar sonoras na basílica do Vaticano:
“Gaudet Mater Ecclesia”:
“Alegra-se
a Mãe Igreja, porque, por singular dom da Providência divina, amanheceu o
dia tão ansiosamente esperado em que solenemente se inaugura o Concílio
Ecumênico Vaticano II, aqui, junto do túmulo de São Pedro, com a proteção da
Santíssima Virgem, de quem celebramos hoje a dignidade de Mãe de Deus.”
Como não se cansava de dizer,
João 23 fazia questão de deixar registrada sua convicção de que o Concilio era
obra de Deus, tinha sido inspirado pelo Espírito Santo:
“Foi algo
de inesperado: uma irradiação de luz sobrenatural, uma grande suavidade nos
olhos e no coração. E, ao mesmo tempo, um fervor, um grande fervor que se
despertou, de repente, em todo o mundo, na expectativa da celebração do
Concílio.”
A Igreja sonhada por João 23 devia ser um sinal de alegria e de esperança
para toda a humanidade.
Calaram fundo as palavras do Papa sobre a nova postura que a Igreja devia
ter diante dos erros que podem surgir. Disse ele textualmente:
“A Igreja sempre se opôs aos erros; muitas
vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo
prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga
satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina
do que renovando condenações.”
Então o Papa pronuncia estas palavras
proféticas, que de certa maneira identificavam a Igreja que o Concílio iria
definir. Disse ele:
“Assim
sendo, a Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecumênico o facho
da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe
amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com
os filhos dela separados.”
E conclui seu discurso propondo o cenário que
envolvia o céu e a terra, convergindo para os bispos reunidos em concílio, a
quem ele transmitia suas sábias recomendações:
“Pode dizer-se que o céu e a terra se unem na
celebração do Concílio: os santos do céu, para proteger o nosso trabalho; os
fiéis da terra, continuando a rezar a Deus; e vós, fiéis às inspirações do
Espírito Santo, para procurardes que o trabalho comum corresponda às esperanças
e às necessidades dos vários povos. Isto
requer da vossa parte serenidade de espírito, concórdia fraterna, moderação nos
projetos, dignidade nas discussões e prudência nas deliberações.
Já no discurso de abertura podemos identificar os traços
característicos da visão de Igreja proposta pelo concilio: uma Igreja sacramento de salvação da humanidade, misericordiosa, mãe
amorosa de todos, pronta e atenta para agir com prudência e bondade.
Mas iniciemos agora o percurso do Concílio, aberto com este
discurso tão animador.
II – A emergência do tema no Concílio
Ao longo da preparação, e mesmo nos primeiros debates, não
estava claro qual deveria ser o núcleo central deste Concílio, sua mensagem
principal, afinal o seu perfil, o seu recado, a sua razão de ser.
A dispersão temática podia ser flagrada na multiplicidade de
esquemas preparatórios. Passavam de 70. Este número generoso, de um lado,
refletia o grande interesse suscitado pelo anúncio do concílio, e o intenso
envolvimento eclesial, estimulado pelo pedido de sugestões, que foram dadas com
generosidade, e recolhidas em doze volumes.
Mas denotava falta de articulação, de um fio condutor, que só seria
identificado através dos debates conciliares.
Foi providencial a escolha do esquema sobre a Liturgia para
dar início aos trabalhos. Era o esquema mais maduro, com boa fundamentação
teológica, e com propostas bem concretas, em torno de um assunto de evidente
proximidade de todos os padres conciliares... A discussão deste esquema
permitiu aproximar os bispos, atualizar o seu latim, que se tornou uma espécie
de “koiné diálectos” para o suficiente entendimento entre eles. E mostrou com
muita evidência a necessidade da renovação, idéia inspiradora de todo o Concílio,
proposta com insistência por João 23.
Terminada a primeira abordagem do esquema sobre
a Liturgia, aconteceu um fato muito importante, que de certa maneira traçou os
rumos do Concílio.
Foi a rejeição do esquema “De fontibus
revelationis”. Era o segundo esquema proposto para estudo. Suscitou logo muitas
resistências, por expressar ainda atitude condenatória frente aos protestantes,
em contraste com o espírito proposto no discurso de abertura, e com as
expectativas de aproximação ecumênica que o anúncio do Concílio tinha despertado.
Levado à votação, expressiva maioria se mostrou
contrária ao documento, pedindo sua substituição. Mas faltaram poucos votos
para atingir os dois terços necessários para rejeitar um esquema, de acordo com
o regulamento.
Foi então que João 23 interveio pela primeira
vez nos trabalhos conciliares, mandando substituir o esquema por outro mais de
acordo com as expectativas ecumênicas.
O fato teve grande repercussão, e conseqüências
práticas muito determinantes, pois de certa maneira conformou uma expressiva
maioria conciliar, feita dos que tinham votado contra o documento, e acrescida
de muitos outros bispos que no gesto do Papa perceberam que ele não se prendia
aos esquemas preparatórios, muitos deles vazados ainda em linguagem da contra-reforma.
A partir daí, as votações encontraram um claro critério de posicionamento, que
atravessou todo o concílio.
Alguns historiadores chegam a identificar naquele
gesto do Papa o término do período histórico da “contra-reforma”. Ela teria se encerrado no dia 20 de novembro
de 1962, data da decisão de João 23 de mandar retirar o polêmico esquema sobre
“as fontes da revelação”.
Aí entrou para a análise o esquema sobre a
Igreja. Foi então que à luz do clima conciliar já consolidado, emergiu com muita
clareza que o Concílio tinha chegado ao “poço de Jacó”, tinha identificado o
tema que o justificava, o assunto articulador de todos os outros, o fio
condutor que estava faltando.
Entre as diversas vozes dos padres conciliares
que ressaltavam a importância de uma nova abordagem da Igreja, se destacou a
intervenção do Cardeal Montini, o futuro Paulo VI. Ele sublinhou a centralidade
do tema, cujos debates estavam iniciando.
Àquela altura, já não havia mais tempo para
aprofundar o assunto, pois se esgotava o período previsto para a primeira
sessão. Mas se conseguiu uma clareza meridiana sobre as temáticas a serem
abordadas pelo Concílio. Elas deveriam girar em torno deste tema central.
De modo que a primeira sessão conciliar
terminava sem nenhum documento, mas com os objetivos do Concílio definidos mais
claramente.
É muito importante perceber o contexto em que o
tema “Igreja” emergiu, num clima de ecumenismo, e na esperança de uma grande
renovação da Igreja.
Portanto, já iam se definindo os contornos da
Igreja que o nosso tempo pedia: engajada na renovação, aberta à causa
ecumênica, comprometida com a unidade dos cristãos.
Antes do debate sobre a Igreja, o Concílio já
balizava os seus contornos, que depois seriam explicitados pelos documentos
redigidos e aprovados.
renovação, e engajada na causa ecumênica.
III – A
centralidade do tema Igreja - A constelação eclesial
No intervalo entre a primeira e a segunda
sessão, enquanto João 23 ainda estava vivo, foram tomadas decisões muito
importantes. A principal delas consistiu na reformulação completa de todos os
esquemas preparatórios, no sentido de aglutinar as temáticas semelhantes,
reduzir sua extensão, clarear sua organicidade.
De tal modo se reduziu o número de esquemas,
que de setenta passaram a pouco mais de dez, ficando em aberto a emergência de
temas novos, que poderiam ainda surgir.
Da reformulação dos esquemas resultou evidente
a centralidade do tema Igreja. De tal modo que se desenhou uma espécie de
“constelação solar”, em que o assunto IGREJA estaria no centro do sistema, com
seus diversos satélites girando ao seu redor.
Antecipando agora um breve olhar sobre esta constelação, e
apresentando-a na forma dos títulos dos 16 documentos conciliares, temos a
Lúmen Gentium como centro do sistema, em seguida as outras três
“constituições”, os nove “decretos”, e as três “declarações”, como os quinze satélites girando em torno da
grande estrela solar, que é a Lúmen Gentium, o documento conciliar sobre a
natureza e a missão da Igreja..
Assim, o Concílio Vaticano Segundo se
caracteriza, claramente, como um concílio “eclesiológico”,
como os primeiros quatro grandes concílios foram claramente “cristológicos”: o
Concilio de Nicéia em 325, o de Constantinopla em 380, o de Éfeso em 431, e o
de Calcedônia em 451.
Neste contexto podemos antecipar uma observação
importante sobre a validade e a vigência deste concílio. Se os primeiros quatro
abordaram um tema bem mais unitário, e assim mesmo retomado quatro vezes, em
quatro concílios subseqüentes, mais compreensível se torna agora a necessidade
de retomar os temas abordados pelo Vaticano Segundo, para aprofundar sua
compreensão, e sobretudo perceber os enfoques diferenciados que o tema Igreja
pode assumir, dependendo dos diferentes contextos em que a Igreja pode se
concretizar.
O fato evidente é que este Concílio abordou um
tema muito vasto, profundo, dinâmico, e multi-facetado.
O Vaticano II colocou em questão a Igreja. Em
torno dela, colocou os fundamentos sólidos, expressos pela Lúmen Gentium. Agora, “cada um veja como constrói sobre este
fundamento” (1Cor 3, 10).
Tendo nascido sob o impulso do ecumenismo, que
apela para a unidade, ao mesmo tempo este Concílio coloca, como decorrência de
sua opção ecumênica, a importância de
acolher dentro da unidade fundamental, a indispensável diversidade eclesial, a
ser corretamente entendida e concretizada.
IV - Igreja Povo
de Deus – a revolução copernicana na eclesiologia
Iniciado na primeira sessão, o tema “Igreja”
foi estudado na segunda, em 1963. Aí ele foi adquirindo aos poucos a fisionomia
que o documento Lúmen Gentium agora apresenta, e que seria aprovado no final da
terceira sessão.
A forma inicial do esquema era bem tradicional
e estreito. Apresentava a Igreja de forma piramidal, com três capítulos centrais:
a hierarquia, os religiosos, os leigos.
Era evidente a estreiteza do esquema, que
precisava ser superada, para acolher uma visão de Igreja mais abrangente. Era forçoso, sobretudo, desfazer a visão
piramidal, que já não se coadunava com a crescente compreensão da hierarquia
como um serviço feito aos irmãos na fé.
Foi neste contexto de busca de uma Igreja mais
fraterna, mais humana, mais simples, mais comunitária, e ao mesmo tempo mais
evangélica, mais autêntica, mais de acordo com o testemunho positivo das
primeiras comunidades cristãs descritas nos Atos dos Apóstolos, que surgiu a
idéia luminosa, de descrever a Igreja como Povo de Deus.
Entre diversos Padres Conciliares que
intervieram, destacou-se a intuição apresentada pelo Cardeal Döpfner, de Munique.
Ele propôs muito simplesmente que antes de falar de categorias especiais dos
membros da Igreja, se falasse de modo abrangente de todos os membros, em sua
igualdade fundamental e na mesma dignidade de filhos de Deus.
Propôs então que se introduzisse um novo
capítulo, precedendo aos três tradicionais, apresentando a Igreja na categoria bíblica de Povo de
Deus.
A idéia foi prontamente assumida, e o gesto foi
interpretado como expressão concreta, assumida pelo Concílio, para fundamentar
uma visão de Igreja que superasse todas
as discriminações, e viabilizasse a integração de outros valores evangélicos,
que a vivencia cristã iria apresentando.
Esta opção de privilegiar a visão de Igreja
como Povo de Deus teve tanta repercussão do Concílio, que ela se assemelhou à
famosa “revolução copernicana”, quando a humanidade se deu conta, ajudada por
Copérnico, que não era o sol que girava ao redor da terra, mas a terra que
girava ao redor do sol.
Assim a centralidade da Igreja não estava na
hierarquia, mas no Povo de Deus, que inclui todos os membros da Igreja, de
maneira igualitária e fundamental, e a serviço do qual está a hierarquia.
Com a introdução do capítulo sobre o Povo de
Deus, o Concílio fazia a clara opção de uma visão bíblica e ao mesmo tempo
histórica da Igreja, possibilitando situar a Igreja no contexto da caminhada da
humanidade, no leque amplo de relacionamentos diversos e concretos que podem
ser suscitados.
A visão de Igreja Povo de Deus possui no
Vaticano Segundo uma centralidade, cujo alcance pode escapar a uma análise
superficial da eclesiologia do Vaticano Segundo.
É a partir da visão da Igreja como Povo de Deus
que se situam, de maneira integrada, as outras dimensões da Igreja, que são
colocadas ao longo dos atuais oito capítulos da Lúmen Gentium. O Capítulo
Segundo tem uma centralidade dinâmica. Possibilita situar a Igreja no seu
relacionamento histórico com a diversidade de “povos, línguas e nações”,
afinal, na sua encarnação concreta e na sua vizinhança com a realidade
histórica da humanidade.
Por isto, parece equivocada a interpretação
divulgada a partir do Sínodo especial comemorativo dos 20 anos do Concílio, em
1985, que teria relativizado a visão de Igreja Povo de Deus, para ressaltar a
dimensão de Igreja como mistério de comunhão.
A afirmação do Concílio, para ser bem
entendida, precisa ser situada no contexto histórico em que foi formulada. Ela
serviu para fundamentar uma nova visão de Igreja, que vinha ao encontro das
grandes expectativas de renovação eclesial, que o Concílio tinha desencadeado.
Por isto, a importância da visão de Igreja como
“Povo de Deus”, vai além do conteúdo desta afirmação, pois era vista e tida
como símbolo da nova visão de Igreja que estava surgindo do Concílio. O Concílio estava propondo uma Igreja “Povo
de Deus”!
V – Visão includente
de Igreja
A visão de Igreja Povo de Deus atravessa todos
os documentos conciliares, e revela uma insistência proposital. Sempre que se fala de Igreja, ou de uma
dimensão relativa à vida da Igreja, logo se ressalta a universalidade eclesial,
que a visão de Povo de Deus facilita.
Disto resulta uma espécie de precaução do
Concílio, para expressar claramente que “todos somos Igreja”, e que os dons
concedidos à Igreja são destinados a todo o povo de Deus.
Assim, por exemplo, na própria Lúmen Gentium,
antes de falar dos religiosos, que possuem a vocação de testemunhar a santidade
da Igreja, o Concílio tomou a providência de anteceder ao capítulo sobre os
religiosos, o capítulo sobre a vocação universal à santidade
Na Presbyterorum Ordinis, ao falar do
“sacerdócio ministerial”, concedido a alguns, faz questão de ressaltar a
importância do “sacerdócio comum” a todos os fiéis, ao serviço do qual está o
sacerdócio ministerial.
De tal maneira que a afirmação da Igreja como
Povo de Deus, precedendo o capítulo sobre a hierarquia, se tornou paradigma da
abordagem de todas as outras dimensões eclesiais, para enfatizar sua destinação
a todos os membros da Igreja.
À luz desta opção, compreende-se melhor a
decisão tomada pelo Concílio, por votação, de incluir na Lúmen Gentium o
documento sobre a Virgem Maria Mãe de Deus. Em vez de um documento especial,
aguardado por alguns com grande expectativa, o Concílio preferiu insistir
também a propósito de Nossa Senhora, enfatizando que ela também está situada no
“mistério de Cristo e da Igreja”.
VI –
Colegialidade Episcopal: uma Igreja corresponsável e participativa
Ao lado da importância da visão de Igreja como
Povo de Deus, o Vaticano II enfrentou a questão da Colegialidade Episcopal, de
grande peso teológico, que estava pendente desde o Vaticano Primeiro.
Colocado o capítulo sobre a hierarquia depois
do capitulo sobre o Povo de Deus, ficou mais fácil de compreender a hierarquia
como um serviço ao Povo de Deus, e partir daí entender sua importância, e sua
missão específica.
Neste Capitulo, de maneira mais destacada, o
Concílio analisa e define a natureza e a missão do Episcopado, entendido como
um sacramento com dimensão eclesial muito clara e fundamental.
Atenta ao formato que Cristo deu ao seu grupo
de Apóstolos, a Igreja faz questão de ressaltar sua continuidade, na mesma
comunhão e na mesma missão. A missão confiada aos doze, comporta a comunhão e a
igualdade entre eles, e ao mesmo tempo a missão própria confiada a um deles,
Pedro, a serviço da unidade e da fidelidade de todos os outros.
É o que a Igreja professa em forma de “primado
e colegialidade”, que o Vaticano Segundo expressou e definiu claramente.
Para a vida da Igreja são indispensáveis tanto
a dimensão de colegialidade, como a dimensão de primado. Ambas estão a serviço
da comunhão eclesial e da fidelidade a Cristo.
Quando se rompe este equilíbrio entre Primado e
Colegialidade, a Igreja fica exposta a rupturas, fáceis de irromper e muito
difíceis de superar depois de implantadas.
Durante o Concílio, um bispo ortodoxo católico
apresentou sua leitura histórica das grandes divisões acontecidas na Igreja,
como decorrentes do exercício inadequado da colegialidade episcopal e do
primado. Segundo ele, a ruptura com os ortodoxos, em 1054, se deu por não terem
valorizado o primado. Foi enfatizada demais a colegialidade.
Depois, o Ocidente, deixado só como o exercício
do primado, levou à ruptura protestante, pela carência de uma colegialidade
vivida a serviço da salutar descentralização da Igreja, que poderia ter
acontecido sem a ruptura protestante.
Não é o caso de discorrer aqui sobre as
múltiplas decorrências que poderiam advir de uma prática mais adequada da
Colegialidade Episcopal. Ela simboliza a
corresponsabilidade eclesial, com o incentivo para a participação de todos na
vida e na missão da Igreja.
Mas no mínimo é conveniente ressaltar que da
reta visão da colegialidade, e da visão da Igreja como Povo de Deus, derivam as
grandes intuições pastorais do Concilio Vaticano Segundo.
Em especial, a importância das Igrejas Locais,
como concretizações da Igreja nas realidades onde ela se insere, na diversidade
de raças e culturas.
Igualmente a importância das comunidades
eclesiais, onde o Evangelho pode ser vivido na prática da convivência cotidiana
e da inserção no mundo.
Sem dúvida, um bom ponto de partida para uma
avaliação do Concílio, seria conferir como é praticada a colegialidade
episcopal.
VII – Uma Igreja
inserida no mundo
No intervalo entre a primeira e a segunda sessão
foi feita a drástica redução dos esquemas, integrando seus assuntos em torno do
tema central da Igreja. Mas logo foi se
percebendo que faltavam alguns assuntos importantes, relativos a realidades de
ordem econômica, social e cultural.
Na medida que estas questões emergiam, foi se
percebendo a necessidade de agrupá-las, num esquema especial, que recebeu o
nome de “esquema treze”, em vista do número de esquemas já consolidados.
Assim é que os assuntos, que a partir da Rerum
Novarum vinham sendo integrados no patrimônio da “Doutrina Social da Igreja”,
foram retomados pelo Concílio, num esquema especial, na tentativa de
atualizá-los e colocá-los em sintonia com contexto conciliar. Destes assuntos
resultou o documento Gaudium et Spes, sobre “A Igreja no mundo de hoje”.
Com isto, a visão de Igreja do Vaticano
Segundo, ficou enriquecida com a descrição de suas relações com a comunidade
humana.
Com este documento o Concílio propõe uma Igreja
servidora da humanidade, inserida na sociedade, e solidária com as causas da
justiça e da paz.
A solidariedade da Igreja com o empenho pelo
desenvolvimento integral “do homem todo e de todos os homens”, iria ficar para
a encíclica pós-conciliar Populorum Progressio, seguindo o conselho levado a
Paulo VI por Dom Helder e outros bispos. Pois já não havia, na quarta sessão,
clima favorável para incluir na Gaudium et Spes todas as dimensões que seria
conveniente ponderar com mais calma, passado o sufoco dos intensos trabalhos da
última sessão conciliar.
Conclusão
Olhar o Concílio na perspectiva de sua
eclesiologia, é mergulhar no seu caudal mais rico e mais profundo. Depois de vinte séculos, a Igreja se reuniu
em concílio, para reencontrar sua identidade, à luz do Evangelho de Cristo e do
testemunho da Igreja Primitiva, e reassumir sua missão diante do mundo para o
qual Cristo a envia hoje.
Dom Helder foi talvez a pessoa que vivenciou
mais intensamente este vasto acontecimento. Tendo vivido intensamente o
Vaticano Segundo, ele sonhava com o Jerusalém Segundo para atualizar a Igreja
de Cristo na virada do milênio.
O jubileu do milênio já aconteceu. Mas não
aconteceram certamente, todos os sonhos de uma Igreja renovada, fraterna,
despojada de superficialidades, e pronta para a missão.
Estamos celebrando os 50 anos da abertura do Concílio.
Ele desencadeou um clima de intensa participação e protagonismo de todos. Como
retomar este protagonismo, e como nos sentir de novo envolvidos na renovação da
Igreja?
Quem sabe poderemos partilhar um pouco nossas
esperanças e nossas apreensões, prosseguindo agora nossa conversa de maneira
aberta e participativa.
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